O FAROL DO FIM DO MUNDO
 
                                                  a ti, senhora, que reencontraste o lar 
Em uma ilha muito distante, em pleno mar do fim do mundo, 
como é conhecido o estreito de Drake, onde o mar é sempre 
agitado por tormentas e o vento ríspido e gélido proveniente 
das regiões glaciais da Antártida, existiu há muito tempo atrás
 um farol numa pequena ilha próxima a terra do fogo. 
Aquele farol era o único naquelas paragens desérticas distantes
 do resto do mundo. Era a luz daquele farol que em noites
 de mar escarpado, trazia aos marinheiros que por ali vagavam, 
a esperança de uma chegada segura no estreito, até a saída 
do canal onde seguiriam em sua viagem rumoas águas do pacífico. 
No farol viveu por muito tempo um faroleiro juntamente com 
sua família – sua mulher e um filho de pouco mais de cinco anos.
 Anos após anos seguidos em uma rotina imutável, vendo passar 
no horizonte distante, os navios
 errantes e o mar impiedoso e atroz.
 O farol nunca falhava. Tormenta após tormenta ele sempre estava lá, 
emitindo sua luz âmbar em todas as direções daquele horizonte sempre
 cinzento, encoberto por neblinas densas. Mais anos e anos 
se passaram e um dia a mulher do faroleiro, na varanda do farol, 
com os olhos voltados em um ponto qualquer do grande mar, enquanto 
dormiam seu marido e filho, desceu até a pequena praia que ali havia, 
e olhando compenetrada o gigante gelado, tomou-o pelo jardim de sua 
casa que quando menina lá morava, e que agora sua mente a trazia de 
volta, e no mar entrou, para o jardim voltou e de lá nunca mais saiu. 
Seu esposo e filho nunca mais retornaram a vê-la.
Os anos continuaram vindo, lentos e infalíveis. 
Até que em certo momento 
alguma coisa pareceu ter acontecido. 
O tempo era sempre lento, e a vida 
no farol era como um quadro pintado, parecia não mudar com o tempo.
 Era sempre a mesma imagem, o mesmo retrato. Mas um dia parece que
 alguma coisa havia mudado. De repente o garoto cresceu sem se aperceber,
 e agora já era adulto. Foi essa mudança que o fez notar o tempo retratado 
no corpo do seu velho pai. Estavam lá as marcas de todos os anos de sua 
vida no farol. Cada ruga, cada cabelo branco contava um cotidiano de uma
 história que ao longo do tempo foi uma só. Dia após dia a mesma história
 durante décadas, e agora parecia serem tão notórias essas evidências do
 tempo marcada na pele do seu velho pai. Pensava isso certo dia quando 
via o velho sentado na varanda do farol, como fazia todos os dias de sua 
vida ali. Então o rapaz se apercebeu do seu destino. E sua mente, como 
o reflexo da luz do velho farol, se iluminou dentro de sua própria alma, e 
pela primeira vez veio um medo interior que o fez sentir-se um ser esquecido.
 Vieram velhas lembranças à sua mente: sua mãe, uma rua, uma casa, algumas
 outras crianças...
E viveu o rapaz dali em diante com uma tristeza que nunca mais lhe sairia dos 
olhos. 
Passaram alguns meses e chegou um certo dia em que as provisões acabaram, 
e o pequeno barco que todos os meses ali encostava para lhes suprir, havia 
uma semana não aparecia. Estavam à mercê do destino. O isolamento era total 
e não havia outro transporte senão uma pequena e velha canoa que usavam 
para pescar próximo às margens e que há muito não usavam. A sede era a pior
 de todas as dores, superando a da fome. O desespero fez com que bebessem 
água salina do mar, o que lhes aumentava a desidratação. O pânico se acercava 
do pai e do filho, até que no amanhecer de um outro dia, apenas um o sentia 
por inteiro com todos os seus terrores. O velho havia morrido.
Sem forças para descer o velho do farol, e enterrá-lo, o rapaz o sentou na 
cadeira da varanda como sempre o velho fizera por todos aqueles anos, 
e lá o deixou. Desceu vagarosamente a longa escada em espiral, arrastou
 a pequena canoa até a margem do mar, subiu e a empurrou até mais fora 
da praia e nela deitou-se com os olhos voltados para o céu. Um instante 
depois com grande esforço sentou-se e buscou seu olhar pela última vez,
 o farol. E lá avistara o velho farol e seu velho pai, sentado como se tivesse 
o observando e de algum modo, querendo dizer-lhe algo em um lamentoso 
adeus. Então deitou-se novamente. Não havia mais nenhum vestígio de forças
 no seu corpo. Entregara-se de vez ao destino infeliz que a vida o premiara. 
E assim as correntes o levaram ao mar aberto até sumir como um pontinho 
escuro no horizonte.
Depois de muito tempo de existência, naquela noite o farol não acendeu. 
Sua luz âmbar nunca mais voltou a iluminar a escuridão das noites daquela
 parte do mundo.
E o tempo passou...Décadas e mais décadas, ninguém voltou a por os pés 
naquela pequena ilha do estreito de Drake. As ondas do mar cavavam 
ano após ano, a base do velho farol. O mar avançara lento, lento. 
As pedras de seus alicerces já começavam a aparecer junto com suas ferragens 
que a salinidade do mar destruía dia após dia, um após outro a cada vergalhão 
da construção. E o tempo passou e passou e o mar avançou e avançou, até que 
um dia o velho farol fraquejou sob seu peso e a fúria das intempéries glaciais
 e por fim, caiu. E seus escombros até hoje estão lá, sob as ondas do mar gélido
 de drake, na terra do fogo. 
Um lugar chamado de fim do mundo, 
porque ali é a terra que o mundo e o tempo esqueceram.
 
Roger Silva